domingo, 12 de dezembro de 2010

A GUERRA NOSSA DE CADA DIA: IMAGENS DO “TERROR” E A LÓGICA HIGIENISTA

A GUERRA NOSSA DE CADA DIA: IMAGENS DO “TERROR” E A LÓGICA HIGIENISTA



Marcondes Brito – Sociólogo, Mestrando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí, na linha de pesquisa de Cultura, Identidade e Processos Sociais. Pesquisa: juventude, identidade e tráfico de drogas.
...E alguém puto com essas histórias todas.
Teresina – Piauí – Brasil.


A Polícia carioca invade os morros. Quando não expulsa, também mata traficantes, invade casas em busca de extirpar o mal. Só as mães, esposas e filhos choram. Um alívio geral toma conta dos moradores do Rio de Janeiro e, via mídia televisiva, todos ficam aliviados, vêem a possibilidade de paz em suas comunidades que convivem com o tráfico de drogas. A mídia alarde aos quatro cantos: “a boa sociedade está vencendo a má sociedade”, e mais uma vez nesse universo de clivagens o bem vai vencendo o mal, mas me proponho a interceder e pensar um pouco sobre como se constroem essas noções entre nós, pobres mortais, cristãos, e por que ficamos tão aliviados assim com essas mortes dos traficantes.

Tais reportagens fazem parte de um processo amplo e direcionado de implantação e difusão do medo, componente mais do que necessário para alimentar as decisões arbitrárias e, ainda, desfocar a discussão do que seria o nó górdio da Segurança Pública, bem como de outros problemas que, no Rio de Janeiro e em muitos outros Estados - aqui incluo também o meu Estado, o Piauí -, ao invés de buscar apontamentos para elucidar as cadeias geradoras do tráfico de drogas, por suas rotas e pelos grandes traficantes, que não estão nas favelas, tem-se intensificado em colocar os pequenos traficantes, moradores dos morros cariocas, das diversas favelas espalhadas por todos os cantos, ou mesmo os usuários das crakolândias Brasil a dentro, cotidianamente como sendo, se não os únicos, mas os principais responsáveis pela violência urbana e consequentemente por seus efeitos.

A potencialização deste antagonismo é incentivada por uma elite política e econômica que, além de sentir-se atemorizada, necessita obscurecer suas responsabilidades e vinculações históricas com a crise social do País. Aproveitando-se de fatos concretos como o aumento do número de atos infracionais cometidos por adolescentes, ações de traficantes, assaltos e ondas de arrastões, mal explicados e bem explorados com o intuito de semear o medo, estes setores adaptam seus interesses particulares de forma a apresentá-los como legítimos, universais e preconizadores do bem-estar e da Segurança Pública, portanto, do bem viver da maioria.

Com toda essa divulgação massiva de violências, temos o cultivo exacerbado da cultura do medo, servindo de sustentação para a proliferação de uma percepção na qual o mal deve ser extirpado a qualquer custo. O Estado, propondo a resolver esse medo e trazer paz social, ganha aval para suas ações, muitas delas inconsequentes e violentas, principalmente como se tem mostrado ultimamente no Rio de Janeiro, exageradamente mostradas e, em outros lugares, silenciosamente, escondidos.

Na interlocução estabelecida com a sociedade, termos como “violência”, “terror” e “medo” são muito utilizados na retórica da mídia sensacionalista brasileira. Todos os dias há algum acontecimento posto nesse enquadramento semântico que identifica a relação da sociedade com o crime, como uma guerra a ser enfrentada o mais rápido possível, ou seja, o inimigo precisa ser vencido. O crime e esse inimigo, mas não qualquer crime, diga-se de passagem, mas sim o crime dos pobres, diga-se bem. É em relação à violência por eles praticada – os pobres -, que a sociedade encontra-se refém, aterrorizada, afrontada.

O foco dessa guerra continua sendo os pobres que, além de intencionalmente condenados por sua condição de pobreza, são também comumente acusados e quase sempre apresentados nas instâncias e cenários de construções e massificação de realidades, se não como os principais, como os únicos responsáveis pelas violências que assolam as cidades e seus cidadãos, sujeitos sobre quem também para justificar as ações das instituições responsáveis pela “lei e pela ordem”, justificam ações quase sempre injustificáveis, como violências físicas, simbólicas e constrangimentos de várias espécies.

Essas espécies de violências ou violações patrocinadas pelos mecanismos estatais, via de regras gerais são aceitas pela sociedade, ou pela grande maioria desta, pois são colocadas sempre pela lente do medo e do necessário para resolver o que causa o medo, sempre apregoado e transformado em um mercado simbólico, onde, depois de disseminado fica mais fácil justificar ações e violências.

A alimentação desse medo cotidiano cria um mercado simbólico, onde os consumidores desse medo generalizado, mal explicado, porém muito difundido, também são consumidores de um modelo de “segurança”, onde a violência, a truculência e qualquer extermínio podem ser feitos em nome do combate ao terror, mas não de um terror qualquer, mas de um terror gerado pela pobreza e pelos pobres.

Em um País como o Brasil, com um histórico de políticas higienista, que sempre pairou por seu imaginário e suas práticas, a noção da “perigosa” ligação entre pobreza e periculosidade, que embalou e ainda embala suas políticas de ação e de segurança, é muito complicado tudo isso está acontecendo e permanecermos estáticos. Se esse modelo vivido no Rio de Janeiro for exportado para os demais Estados da Federação, teremos um genocídio estatal, generalizado e direcionado, que antes de atacar o problema - que seria o tráfico de drogas -, ataca os afetados pelo problema, construindo sobre eles a noção do próprio problema. Como o Rio de Janeiro, hoje, vive seu próprio “Iraque”, daqui a alguns meses outras partes do Brasil, se essa lógica for exportada, viverão seus próprios “Rio de Janeiro”, pois lembrando da lição nos dada por Hanna Arendet, em seu livro sobre as origens do totalitarismo, ou mesmo Foucault (2003) em seu livro em defesa da sociedade, uma lógica ou prática totalitária, ou fascista, antes de se transformar em prática é transformada em ideia e massificada, para só depois se transformar em prática social.