terça-feira, 8 de abril de 2014

MARCAÇÃO E DEMARCAÇÃO DE IDENTIDADES E TERRITÓRIOS DE QUILOMBOLAS



MARCAÇÃO E DEMARCAÇÃO DE

IDENTIDADES E TERRITÓRIOS DE QUILOMBOLAS
Áureo João de Sousa[1]. Setembro de 2013
Resumo: Este ensaio oferece uma base conceitual sobre quilombos, na historiografia brasileira, inclusive sua ressemantização e ressignificação na contemporaneidade. Trata da determinação e da autodeterminação do termo, dos fatos e dos sujeitos históricos. Aborda os instrumentos para a regularização dos territórios das comunidades quilombolas, com ancoragem na Convenção 169 da OIT; na Constituição Federal do Brasil de 1988, com especificidade sob o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, combinado com os art´s. 215 (direito à cultura, e à cultura afro-brasileira) e 216 (direito ao patrimônio cultural); no Decreto Presidencial nº 4887/2003 (regularização de territórios quilombolas). Para tanto, foram escolhidos percursos e procedimentos do método bibliográfico de investigação científica. Deixa à mostra que o processo de marcação e demarcação de identidades e territórios quilombolas ainda é palco de sérias controvérsias e resistências diversas. Situa-se no campo das identidades culturais na contemporaneidade e, dentro deste, os quilombos contemporâneos e suas identidades multifacetárias. Tem como objetivo delimitar um discurso sobre as identidades que se inscrevem e se apresentam na roda da comunidade quilombola de nossos dias; os elementos e as relações que dão os fundamentos – por afirmação, por negação, por resistência e/ou acomodação - para a construção, ressignificação, ressemantização e predicação das identidades quilombolas na atualidade, tomando em conta as narrativas da população quilombola, bem como a produção conceitual exógena. Esta temática e os sujeitos sociais e étnico-raciais africanizados no Brasil constituem motivo central de minha pesquisa, no contexto do Mestrado em Sociologia na Universidade Federal do Piauí.
Palavras-chave: Africanidades e afrodescendência. Territorialidade. Quilombos. Identidades.
A marcação e demarcação de identidades e territórios de populações afrodescentendes quilombolas, via de regra geral, faz aparecer uma interlocução com a questão racial, não raro com sentido biologizado e também o sentido essencializado. Isso não é uma recorrência isolada, de modo que no debate sobre e com as africanidades e afrodescendências, no Brasil, a questão da “raça” está posta, com significados variados. Por conseguinte, o preâmbulo deste ensaio reserva um lugar especial para nos introduzirmos no texto a partir dessa ocorrência inevitável.
A questão da “raça” como divisor natural entre os humanos, especialmente no atual estágio contemporâneo de nossa História, é sabido e aceito que essa premissa não tem comprovação genética válida hoje; é uma categoria natural refutada de pleno na Ciência. Cientificamente – diga-se: pelas Ciências Naturais, sob seus fundamentos, seus métodos de aferição e validação -, essa refutação está mensurada e validada, sem contestações consideradas, conferindo-se ao Projeto Genoma Humano [PGH[2]] a base científica – Ciência Genética - de mais recente validação da população humana organizada sob uma espécie monotípica. Neste sentido “As diferenças refletem apenas a adaptação evolutiva das populações geograficamente diversificadas de Homo sapiens sapiens ao seu hábitat e não servem para atestar a existência de raças dentro de nossa espécie” (PENA, Sérgio D. J; BORTOLINI, Maria Cátira, 2004, p.4).
Os posicionamentos em defesa da construção de identidades étnico-raciais afro-brasileiras, inclusas as identidades quilombolas, não incluem o argumento centrado na raça em sentido genético como marca divisória natural na população. Porém, advoga que a “raça” é uma categoria política e discursiva fortemente presente na sociedade brasileira, cuja categoria encontra aplicação utilizada como marcador e demarcador nas relações de forças e de poder entre os atores sociais que fazem a história contemporânea das civilizações e das culturas em cursos, inclusive no Brasil. As Ciências Sociais e as Ciências Humanas compreendem essa categoria discursiva e de poder simbólico e político, investida na “raça”, reconhecendo-lhes essa validade teórica e conceitual, bem como seus efeitos no cotidiano das relações sociais, vistas nas questões produtivas e econômicas, na ocupação dos espaços de poder, bem como na construção das subjetividades. É mais apropriado, portanto, ao conceito antropológico atual de “raça social” ou conceito social de raça e “a construção social da raça” (BOWEN; ERICKSON, 2011, pp.337-342) para a espécie humana, mas não o conceito científico-biológico.
Entre os interlocutores da defesa das identidades afro-brasileiras e da sua espécie quilombola, o termo “raça” é tomado no sentido produzido sob circunstâncias históricas, políticas, econômicas, sociológicas, culturais, ideológicas e de poder e, ainda, mediado sob valores sociais, étnicos, morais, religiosos e de costumes de dada sociedade, por um grupo humano ou grupos humanos, sem nenhuma subordinação linear fixa e obrigatória ao que está “cientificamente comprovado” nas leis da natureza biológica. Note-se, por exemplo, na correspondente noção de ancestralidade em Oliveira (2009), concebida para além das relações de consaguinidade.
 [...]Ancestralidade, inicialmente, é o princípio que organiza o candomblé e arregimenta todos os princípios e valores caros ao povo-de-santo na dinâmica civilizatória africana. Ela não é, como no início do século XX, uma relação de parentesco consanguíneo, mas o principal elemento da cosmovisão africana no Brasil. Ela já não se refere às linhagens de africanos e seus descendentes; [...] Posteriormente, a ancestralidade torna-se o signo da resistência afrodescendente. Protagoniza a construção histórico-cultural do negro no Brasil e gesta, ademais, um novo projeto sócio-político fundamentado nos princípios da inclusão social, no respeito às diferenças [...] Passa, assim, a configurar-se como uma epistemologia que permite engendrar estruturas sociais capazes de confrontar o modo único de organizar a vida e a produção no mundo contemporâneo (OLIVEIRA, 2009,pp.03-09).
Note-se, também, que toda a legislação brasileira concebida de 1988 até agosto de 2013 e, em especial, aquelas fundantes das Políticas de Ações Afirmativas em favor dos afro-brasileiros, publicadas no ciclo em referência, todas produzidas a partir de mobilizações e articulações políticas organizadas com a participação de Movimentos Sociais Negros, em suas múltiplas formas sociais de organização, inclusive as entidades de representação das populações quilombolas, nenhuma delas se sustenta em eixo central com subordinação fixa em componente biológico-genético como determinante ou como referência de critérios para o estabelecimento de seus destinatários. O fenótipo encontra-se posto em face do processo histórico e das construções sociais sobre as africanidades e afrodescendências, no Brasil (cf. Fundação Cultural palmares. Ações Afirmativas. As principais Ações. Disponível em . Acesso em: 30 Ago.2013).
Conceitualmente, no curso da pesquisa de campo que levarei a cabo com a Comunidade Quilombola Custaneira, situada no município de Paquetá do Piauí, Estado do Piauí – Brasil, eu tomarei em consideração o que nos oferece José Augusto Lindgren Alves - Diplomata e Embaixador do Brasil em Sófia [Bulgária] e membro do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, em Genebra, sobre “raça”:
Todos de boa fé sabem que "raça" é, sobretudo, uma construção social, negativa ou positiva conforme o objetivo que se lhe queira dar. Pode ou não envolver traços físicos, cor de pele, língua, religião ou costumes "racializados". Com sentido romanticamente comunitário, a idéia de "raça" fundamentou a formação dos Estados nacionais europeus [...], assim como serviu de base à expansão colonialista, justificando a dominação "civilizadora" de populações "inferiores". Nesse mesmo sentido identitário, agora com os sinais trocados, a raça tem sido atualmente usada pela esquerda como amálgama de auto-afirmação para quem antes era, ou ainda permanece, depreciado pelos demais. E ao mesmo tempo serve ao diferencialismo racista da direita, que rejeita os imigrantes, os estrangeiros, os diferentes, porque "culturalmente inassimiláveis".
O problema não está na existência ou não de raças, mas no sentido que se dá ao termo. Se atribuirmos caracteres inerentes, naturais e inescapáveis, às diferenças físicas, psíquicas, lingüísticas ou etno-religiosas de qualquer população, estaremos sendo racistas, quase sempre para o mal.
(ALVES, 2002, pp.9-10).
Também no campo jurídico, o conceito de raça está devidamente pacificado, quanto aos seus fatores determinantes e seus usos nas relações sociais. O Supremo Tribunal Federal - STF, do Brasil, pronunciando sobre o Habeas Corpus/HC nº 82424-2/RS–RIO GRANDE DO SUL, julgado em 17 de setembro de 2003, no Tribunal Pleno, que trata do crime de racismo praticado em desfavor do povo judeu, em que é “pacienteSiegfried Ellwanger, por ter, “na qualidade de escritor e sócio da empresa ‘Revisão Editora Ltda’, editado, distribuído e vendido ao público obras anti-semitas de sua autoria, e da autoria de autores nacionais e estrangeiros”, rejeita a tese da defesa do acusado de que o agente não cometera o crime de racismo contra o povo judeu, conforme a prescrição do art. 5º, XLII, CF/88, combinado com a Lei Federal nº 7.716/89[3], sob a alegação de que “judeu” não é “raça”. A Corte Suprema brasileira ratificou o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, com o expresso indeferimento do objeto do Habeas-Corpus, mantendo a condenação do réu. Para tanto, o STF pacificou o seguinte conceito de raça:
Raça é uma representação mental para uma realidade de histórico-racial de discriminação em que grupos sociais dominantes criam e reproduzem padrões de valor cultural hábeis a subjugar um determinado segmento de menor expressão (op. cit).
O Ministro Maurício Corrêa, da Suprema Corte da Justiça no Brasil, manifestando voto sobre o Habeas-Corpus acima, entendeu que [...] “a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens. Disso resultou o preconceito racial.” O eminente Ministro, ainda ressalta na fundamentação de seu voto, que
69.Outras manifestações da doutrina constitucional brasileira afastam a pretensa limitação do racismo ao conceito biológico tradicional da raça. Uadi Lamêgo Bulos define-o como “todo e qualquer tratamento discriminador da condição humana em que o agente dilacera a auto-estima e patrimônio moral de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, tomando como critérios raça ou cor da pele, sexo, condição econômica, origem etc.
[...]
88.Nesse passo, a correta conclusão do Professor Miguel Reale Júnior, de que “o racismo é, antes de tudo, uma realidade social e política, sem nenhuma referência à raça enquanto caracterização física ou biológica, como aliás, as ciências sociais hoje em dia indicam[...].
(Disponível em .). Acesso em: 02 Ago.2013.
No Acórdão do Tribunal do Pleno do STF, uma síntese conceitual dos termos “raça”, “racismo” e “discriminação racial”:
4.Raça e Racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.
[...]
6.[...] discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.”
(cf. HC 82424/RS. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento em: 17/09/2003, publicado no DJ 19-03-2004 p.00017. Disponível em . Acesso em: 02 Ago.2013).
Portanto, o veredicto da Ciência Genética contemporânea sobre a espécie humana, por si só, não supera os sentidos sociais que já estão em voga nas teias das intersubjetividades da sociedade brasileira, enquanto que as noções sociais e jurídicas atualmente predominantes sobre “raça”, no Brasil, não nos permitem forçar o apagamento dos sentidos do termo no interior das relações socioculturais e políticas construídas fora e para além da genética humana validada nas comprovações científicas da atualidade. Na comunidade quilombola Custaneira, poderemos encontrar estes e outros vários sentidos e aplicações do termo “raça”, em manifestações singulares, porém a visão política geral, externalizada nas arenas públicas, por parte das organizações dos Movimentos Sociais Negros e Movimento Quilombola, refuta a noção central naturalizada sobre a biologia-genética e qualquer noção de supremacia racial. Eu caminharei com a noção social predominante, quando das interações com os sujeitos históricos e étnicos da comunidade pesquisada, e auscultarei os sentidos que lhes são de usos seus.
Mas, no Brasil, também não se pode perder de vista que o Estado [ente político formal] e a sociedade têm oferecido acontecimentos históricos que testemunham a validação conceitual, sob certas circunstâncias históricas, de operações concretas e simbólicas, do conceito de “raça” a partir de uma noção evolucionista-darwinista, com sérias conseqüências civilizatórias. Sob o jugo do ideário do colonizador europeu, autodeclarado “branco”, “cristão”, “católico”, “civilizado”, “evoluído”, “puro”, “superior”, etnocêntrico por excelência egoísta, combinado com o ethos do capitalismo (primitivo e contemporâneo/globalizado), os negros, os índios, os judeus, os ciganos e asiáticos – todos não-brancos -, foram considerados da pertença de raças inferiores ou raças infectas (CARNEIRO, 2007; MUNANGA, 2008; SANTOS, 2005; SILVA, 2009). Ressalte-se, em boa hora, que a Ciência tem oferecido importantes subsídios teóricos, metodológicos e instrumentais, sob a chancela do “cientificamente comprovado”, a serviço de ideologias racistas e totalitárias, especialmente porque as Ciências nunca estiveram isentas das influências e determinações de forças políticas dominantes, face à sua neutralidade impossível.
Nesta pesquisa, repelimos as noções de “raças” trazidas nas abordagens evolucionistas e no pensamento racial do século XIX, à maneira daquela reproduzida no Brasil por Nina Rodrigues[4]. Todavia, eu já tenho elementos suficientes para, em vez de ancorar minha pesquisa na “raça” biológica, buscar ancoragens das abordagens de etnicidade, sobre a qual retornarei após as fundamentações sobre “quilombos” e “territorialidades”, adiante expostas.
Para o trato da categoria conceitual “quilombo”, neste ensaio, tomo as definições históricas e suas evoluções. Vocábulo de origem banto (kilombo) que significa “acampamento” ou “fortaleza”, foi termo usado pelos portugueses para designar as povoações construídas pelos escravos fugidos.[...]. O estudo do fenômeno no Brasil tem-se utilizado, basicamente, de documentos produzidos pela repressão que, se não impedem o conhecimento dessas comunidades, exigem um grande esforço para captar aspectos não registrados nas fontes militares. [...] Os quilombos são citados na historiografia, desde a primeira metade do século XVIII, como parte da historiografia militar dos portugueses na colônia [...] (VAINFAS, 2001, pp.494-495, verbete “Quilombos”).
O Conselho Ultramarino de 1740 define quilombo como toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenha ranchos levantados nem se achem pilões neles (LOPES, SIQUEIRA E NASCIMENTO, 1987, p.27, apud TESKE, 2010, p.65).
[...] a Coroa lusitana definiu como quilombo, em 6 de março de 1741, toda concentração de cinco ou mais quilombolas. No império, leis provinciais chegaram a considerar como tal agrupamentos de três e mesmo de dois cativos (MAESTRI, 1988, p.122, apud TESKE, 2010, p.65).
A organização do “quilombo” não foi uma peculiaridade da história brasileira, dada a prova de ocorrência de agrupamentos similares em outras regiões da América escravista – os palenques cubanos e colombianos, as agrupações bush negroes no Suriname, as comunidades de marrons na Jamaica etc. Na ilha de São Tomé, ao largo da costa ocidental africana, escravos fugiam das plantações lusitanas e aquilombavam-se nos ermos da ilha. O quilombo não foi um fenômeno originado em tradições sociais ou culturais africanas – apesar de estar prenhe delas – como sugere a própria palavra cimarrón. Esta palavra teria sido inicialmente aplicada a seres humanos, em Cuba, na primeira década do século XVI, para designar os aborígenes que fugiam da brutalidade dos colonizadores (MAESTRI, 1988, p.127, apud TESKE, 2010, pp.63-64).
Historicamente, “a população dos quilombos não era constituída apenas de escravos fugidos e seus descendentes. Para ali também convergiam outros tipos sociais pressionados pelo avanço europeu” (REIS, 1995, 1996, p.16, apud TESKE, 2010, p.62). Por conseguinte, trata-se de observá-los como processos históricos de resistências[5] aos empreendimentos civilizatórios europeus, de subalternização, escravização e deslocamentos compulsórios de povos africanos e afrodescendentes, com denominações diferentes nas Américas (CARVALHO, 1996). As trincheiras de resistências implicavam em manter aspectos da organização social, religiosidade e cultura, significando: uma rebelião, uma sublevação, uma insurreição (CARVALHO, 1996), ou isolamento e/ou negociação (COSTA, 1999), ou ainda como forma de reconhecer do Estado (ALMEIDA, 1999).
Almeida (1999) considera que a definição jurídica de quilombo como sendo, inscrita pelo Conselho Ultramarino em 1740, traz os seguintes elementos a considerar: a fuga; a quantidade mínima de fugidos; a localização, que é marcada pelo isolamento geográfico de difícil acesso e mais distante do que é chamado civilização; o rancho, ou seja, a moradia habitual com benfeitorias talvez existentes; e por último, o termo “o pilão” da afirmação: “nem se achem pilões neles”, ou seja, o pilão como instrumento que transforma o arroz colhido em alimento simbolizava cultura de reprodução do grupo. Assevera- ainda, este autor, que
a situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo, embora simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do bom senhor, tal como se detecta hoje em algumas situações de aforamento (ALMEIDA, 1999, pp.14-15).
Resultado das lutas e das relações estabelecidas no processo histórico, na atualidade há ressemantização e ressignificação de termos, fatos e conceitos.
O termo “quilombo” foi, portanto, empregado e disseminado na historiografia oficial das Américas colonizadas, como conceito e como prática social apropriada e significada a partir do ponto de vista do sujeito colonizador, que detinha o poder da sua própria fala, da sua própria escrita e da publicação de seu discurso colonial, não raro etnocêntrico, racista e anti-africanos/afrodescendentes. No entanto, os próprios sujeitos africanos, afrodescendentes e afro-brasileiros, nas Américas e no Brasil, concebiam e vivenciavam, desde sempre, seus próprios conceitos, discursos e práticas sociais do termo e fora deste. Na literatura brasileira, as modificações e as ressignificações do termo e dos sujeitos ganham enunciados na pauta do discurso político e na historiografia, a partir da efetiva inserção das várias formas de mobilização das lutas das populações afro-brasileiras, especialmente com as organizações abrigadas no termo genérico “Movimentos Sociais Negros” e na agenda específica do “Movimento Quilombola”.
O quilombo constitui questão relevante desde os primeiros focos de resistência dos africanos ao escravismo colonial, reaparece no Brasil-república com a Frente Negra Brasileira (1930/40) e retorna à cena política no final dos anos 70, durante a redemocratização do país. Trata-se, portanto, de uma questão persistente, tendo na atualidade importante dimensão na luta dos afrodescendentes. Falar dos quilombos e dos quilombolas no cenário político atual é, portanto, falar de uma luta política e, consequentemente, uma reflexão científica em processo de construção […]. (LEITE, 2000, p.333).
De modo contextualizado, para esta autora,
Tudo isto se esclarece quando entra em cena a noção de quilombo como forma de organização, de luta, de espaço conquistado e mantido através de gerações. O quilombo, então, na atualidade, significa para esta parcela da sociedade brasileira sobretudo um direito a ser reconhecido e não propriamente e apenas um passado a ser rememorado. Inaugura uma espécie de demanda, ou nova pauta na política nacional: afrodescendentes, partidos políticos, cientistas e militantes são chamados a definir o que vem a ser o quilombo e quem são os quilombolas (LEITE, 2000, p.335).
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) – Grupo de Trabalho Terras de Quilombos -, em posicionamento sobre a operacionalização do direito quilombola, concebe que
[...I o termo quilombo tem assumido novos significados na literatura especializada e também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo "ressemantizado" para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil.[...] consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio [...I (O'DWYER, 2002, pp.18-19).
Para Teske (2010), portanto, “o que caracteriza uma comunidade quilombola não é apenas a questão de ocupação e demarcação de um espaço geográfico, e, sim, aspectos que envolvem questões de cidadania e direitos humanos” (TESKE, 2010, p.77).
Na perspectiva de Little (2002), em alinhamento com os autores antecedentes,
a expressão da territorialidade quilombola não reside na figura de leis ou títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território (LITLE, 2002, p.11, apud TESKE, 2010, 79).
Esta categoria conceitual, por conseguinte, tomo-a partir da consideração de que, na tradição popular no Brasil, há muitas variações no significado da palavra quilombo, ora associado a um lugar (“quilombo era um estabelecimento singular”), ora a um povo que vive neste lugar (“as várias etnias que o compõem”), ou a manifestações populares (“festas de rua”), ou ao local de uma prática condenada pela sociedade envolvente (“lugar público onde se instala uma casa de prostitutas”), ou a um conflito (uma “grande confusão”), ou a uma relação social (“uma união”), ou ainda a um sistema econômico (“localização fronteiriça, com relevo e condições climáticas comuns na maioria dos casos”) (LOPES, SIQUEIRA e NASCIMENTO, 1987:15, apud LEITE, 2000, pp.336-337). Essa vastidão de significados, como concluem vários estudiosos da questão, favorece o seu uso para expressar uma grande quantidade de experiências, um verdadeiro aparato simbólico a representar tudo o que diz respeito à história das Américas (GIUCCI, 1992, p.25, apud LEITE, 2000, P.337).
Não nos deverá faltar atenção ao fato de que as dinâmicas da diáspora[6] de povos africanos no Velho Mundo (Europa) e no Novo Mundo (as Américas), especialmente a partir de e no pólo do projeto civilizatório e seus processos sob o colonialismo europeu na América Latina, repercute nos processos de deslocamentos, realocamentos, expulsão e reocupação de espaços, ou seja, de territorialização e re-territorialização, com a constante invenção, reinvenção e plasticidade das resistências empreendidas na experienciação dos povos afrodescendentes no Brasil. Esse processo “vem a reafirmar que, mais do que uma exclusiva dependência da terra, o quilombo, neste sentido, faz da terra a metáfora para pensar o grupo e não o contrário” (LEITE, 2000, p.339).
Esta perspectiva dialética da diversidade, multiplicidade e plasticidade abriga uma noção de territorialidade negra afro-brasileira que me importa relevância como princípio orientador, especialmente para evitar os engessamentos mentais e conceituais do que são e do que poderão vir a ser os quilombos, as comunidades quilombolas, suas identidades e suas territorialidades, ou melhor, do que eu possa conceber sobre esses sujeitos, seus lugares, suas invenções e expressões, porque
os grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua extinção (SCHMITT et al, 2002, p.3)
A começar pela denominação com sentido de lugar, já se faz necessário transcendermos as noções unívocas, posto que
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias destes grupos, uma denominação também possível para estes agrupamentos identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras de preto”, ou “território negro”, tal como é utilizada por vários autores, que enfatizam a sua condição de coletividades camponesa, definida pelo compartilhamento de um território e de uma identidade (SCHMITT et al, 2002, p.3).
Mas também ao sentimento manifesto sobre esse lugar e a relação com esse lugar, as nuanças são múltiplas e plásticas, dentro dessa especificidade de sujeitos e lugares:
[...] em consonância com um moderno conceito antropológico, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma dilatada e enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico” (SCHMITT et al, 2002, p.4; e GARCIA in: ANDRADE, 1997, p.47, apud SCHMITT et al, 2002, p.8).
As “Identidades” e as “territorialidades”, nas expressões de suas materialidades e subjetividades, são construídas nos percursos históricos e em dinâmicas relacionais, por aproximação e por distanciamentos, por atrações e por repulsas, por movimentos e forças políticas centrífugas e centrípetas, por negação e afirmação de pertencimentos.
Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em relação aos outros grupos com os quais os quilombolas se confrontam e se relacionam. Estes dois conceitos são fundamentais e estão sempre interrelacionados no caso das comunidades negras rurais (SCHMITT et al, 2002, p.4).
Nos grupos negros afrodescendentes e no interior destes, as comunidades negras rurais quilombolas afro-brasileiras, a construção de suas identidades e territórios incluem relevância às relações de parentescos, ainda que não seja requisito de exclusividade.
[...] parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um território maior. Se, por um lado, temos território constituindo identidade de uma forma bastante estrutural, apoiando-se em estruturas de parentesco, podemos ver que território também constitui identidade de uma forma bastante fluída, levando em conta a concepção de F. Barth (1976)[7] de flexibilidade dos grupos étnicos e, sobretudo, a idéia de que um grupo, confrontado por uma situação histórica peculiar, realça determinados traços culturais que julga relevantes em tal ocasião. É o caso da identidade quilombola, construída a partir da necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas duas décadas (SCHMITT et al, 2002, p.4).
Schmitt et al (2002) nos dá conta de uma noção de que as identidades e as territorialidades quilombolas reivindicam um passado para estabelecer suas ancoragens objetivas e subjetivas, e presentificar esse passado. Não “são” [fixas] na história congelada, mas “estão sendo” nas dinâmicas dos processos socioculturais e históricos, e nas relações de concorrências de poder, dominações e subalternidades.
Estamos, portanto, diante da incorporação de identidades que, em decorrência de eventos históricos, introduzem novas relações de diferença, as quais passam a ser fundamentais na luta dessas populações negras pelo direito de continuar ocupando e transmitindo às gerações vindouras o território conformado por diversas gerações de seus antepassados. Assim, na esteira de Barth, podemos pensar as identidades não como sendo fixas, mas, tomando as palavras de Boaventura Souza Santos, como “identificações em curso”, integrantes do processo histórico da modernidade, no qual concorrem velhos e novos processos de recontextualização e de particularização das identidades. Um processo histórico de resistência, deflagrado no passado, é evocado para constituir resistência hoje, praticamente como a reivindicação de uma continuidade desse mesmo processo. A identidade de negro é colocada como uma relação de diferença calcada na subalternidade e na diferença de classes. Boaventura S. Santos, ao relacionar identidade e questões de poder, nos lembra que quem é obrigado a reivindicar uma identidade encontra-se necessariamente em posição de carência e subordinação (SCHMITT et al, 2002, p.4).
Portanto,
[...] é a partir dessa posição historicamente desfavorável no que diz respeito às relações de poder, que comunidades quilombolas vêm lutando pelo direito de serem agentes de sua própria história. Em tal situação de desigualdade, os grupos minoritários passam a valorar positivamente seus traços culturais diacríticos e suas relações coletivas como forma de ajustar-se às pressões sofridas, e é neste contexto social que constroem sua relação com a terra, tornando-a um território impregnado de significações relacionadas à resistência cultural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram alguma autonomia cultural, social e, conseqüentemente, a autoestima. Siglia Dória[8] salienta que a identidade de grupos rurais negros se constrói sempre numa correlação profunda com o seu território e é precisamente esta relação que cria e informa o seu direito à terra  (SCHMITT et al, 2002, p.5).
De entrada no processo de construção do debate desta temática, inclui uma antecipação para sanar uma noção de isolamento dos quilombos, recorrente em muitos autores e discursos livres sobre a especificidade do tema, ao enunciar a criação e permanência dos quilombos associados a um “afastamento” [isolamento] dos círculos das relações sociais históricas de seu tempo e de seu lugar de materialização, e de subjetivação. Os quilombos se fizeram e se refizeram, e fazem-se hoje, no interior das relações sociais circulantes, inclusive a subalternização imposta e as rupturas postas a estas.
Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros tenham resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à margem da sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e assimetricamente com a sociedade brasileira, resistindo a várias formas de violência para permanecer em seus territórios ou, ao menos, em parte deles (SCHMITT et al, 2002, p.6).
Parece-me que aqui, com Schmitt et al (2002) mais apropriadamente, os fundamentos das teorias contemporâneas da etnicidade indicam lugar de razoável ancoragem a sustentação deste.
Para o trato com as lentes da etnicidade, convém
[...] que a etnicidade é uma forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validade na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores. Esta definição mínima é suficiente para circunscrever o campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidade: aquele do estudo dos processos variáveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e são identificados pelos outros na base de dicotomizações Nós/Eles, estabelecidas a partir de traços culturais que se supõe derivados de uma origem comum e realçados nas interações raciais. Se tal definição não apresenta resposta a priori para a questão da gênese e da persistência de grupos étnicos, ela permite que se identifiquem os problemas-chave que, qualquer que seja o tipo de abordagem utilizado, encontra-se de modo recorrente nas problemáticas da etnicidade:
·     O problema da atribuição categorial pela qual os atores identificam-se e são identificados pelos outros;
·     O problema das fronteiras do grupo que servem de base para a dicotomização Nós/Eles;
·     O problema da fixação dos símbolos identitários que fundam a crença na origem comum;
·     O problema da saliência que recobre o conjunto dos processos pelos quais os traços étnicos são realçados na interação social.
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, pp.141-142)
Sob uma definição conceitual mais entendível,
A etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável de ‘traços culturais’ (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, código de polidez, práticas de vestuário ou culinárias etc), transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo. Ela provoca ações e reações entre este grupo e os outros em uma organização social que não cessa de evoluir (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, frontispício).
À luz dos fundamentos teóricos dos aportes até aqui invocados à sustentação deste ensaio, eu encontro substâncias para minha apreensão sobre as categorias conceituais de “quilombo” (histórico e contemporâneo), territorialidades e identidades (históricas e contemporâneas), mas também a evocação de outros fundamentos correlatos aportados em estudos consolidados, tais como campesinidades, ruralidades, socioambientalismo e as lutas históricas e atuais pela posse, propriedade e uso da terra, de cujos campos os quilombos e as populações quilombolas não estão apartados desses processos empíricos.
Por conseguinte, para o tratamento com das categorias conceituais que tocam as “ruralidades” atuais, tomo consideração e ancoragem inicial em Cordeiro (2012), através de cujas lentes etnográficas eu pretendo interagir e apreender “situações tidas como rurais” – paisagens físico-naturais, paisagens humanas, paisagens socioculturais, atividades, relações - , seja nas categorias conceituais, seja nas experienciações reais, “que são especialmente sugestivas e instigantes para problematizar a maneira pela qual, no Brasil contemporâneo, concebemos tal distinção e dela lançamos mão” (CORDEIRO, 2012, apresentação), e como os sujeitos lidam com os determinantes que se evidenciam nos processos de configuração e reconfiguração das relações sociais, códigos e linguagens, haja vistas os intercâmbios estabelecidos pelas populações quilombolas no interior das fronteiras e no além-fronteiras urbano-rural.
Interessa-me ainda, neste itinerário, os estudos sobre ruralidades no mesmo leque que comportam aqueles sobre raça/etnia, comportando entendimentos de que não há pertinência na aproximação entre os dois temas para o caso de estudos sobre populações quilombolas contemporâneas e a visão de aproximação entre os dois temas sob a denominação de novos nominalismo para o campesinato brasileiro (MORAES, 2013). Apreendo, portanto, que as múltiplas acepções poderão vir a ser identificadas no interior de comunidades quilombolas, com possíveis interfaces temáticas e, também, distanciamentos possíveis.
Em caráter de aproximação, parece-me possível identificar pelo menos três aspectos correlacionados às ruralidades negras: campesinidades (WOORTMANN, K, 1990); territorialidades (LITTLE, 2002) e tradição (ALMEIDA, 2006) na tematização do que seja quilombo.
A discussão sobre campesinidades emerge em parte no âmbito do debate sobre a categoria campesinato e sua adequação para a experiência brasileira, que vai desde o conceito identitário fixo, sendo o camponês um sujeito histórico e empírico em vigor, em declínio ou em reelaboração ou uma espécie de característica identitária que figura mais ou menos em grupos sociais em determinados momentos. Trata-se do conceito de campesidade na elaboração de Woortmann (1990), que possibilita conceber dimensões valorativas do modo de vida camponês, tomado como modo de vida específico num âmbito social mais amplo, em que é socialmente constituído e constituinte.
O atributo das territorialidades envolve dimensões geográficas, sociais, políticas e ambientais em diálogo com Little (2002, p. 3), que conceitua territorialidade como: “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico”, o que permite tomar as territorialidades quilombolas como uso e ocupação e a luta para controlar, considerando o contexto de luta e disputa pela terra no contexto brasileiro.
O atributo tradição relacionado às ruralidades quilombolas é tratado por Almeida (2006), que considera o termo mais do que uma ideia de continuidade, velho, antigo ou arcaico; trata-se de uma força política no presente “como reivindicação contemporânea e como direito envolucrado em forma de autodefinição coletiva” (Almeida, 2006. p. 9).
O atributo da tradicionalidade incorporado na identidade quilombola figura também como conhecimento associado à biodiversidade correlacionado à sustentabilidade (ALMEIDA, 2006), considerando que as práticas socioambientais materializadas na categoria nativa roça não se tratam apenas de um cultivo, mas de uma maneira de viver e de ser, um estilo de vida que conceitua natureza na categoria terra e que reivindica identidade coletiva política.
Logo, parece-me razoável considerar os elementos fundantes de etnicidade, quilombo e quilombolidades, campesinidades, territorialidades e tradicionalidade como sendo aportes orientadores do itinerário de estudos bibliográficos e com pesquisas correlatas, com a elasticidade permitida nas ciências sociais de nossos dias.
Para o trato da categoria “comunidade quilombola”, eu também utilizo uma âncora constitucional em vigor. Trata-se do fato histórico que se constitui na primeira vez que o Estado brasileiro inscreve, de modo afirmativo, o sujeito constitucional “quilombola” e o lugar “quilombo” ou “território quilombola”. Mas também, com o mesmo alinhamento do direito teórico e material, recorro aos fundamentos de Convenção Internacional aplicável à temática.
Por conseguinte, quanto aos territórios, inclusive as terras, e às identidades, na temática dos quilombos, em se tratando de instrumentos de direitos formais, temos a Convenção 169 da OIT; a Constituição Federal do Brasil de 1988, com especificidade sob o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, mas também a sua combinação imediata com os art´s. 215 (direito à cultura, e à cultura afro-brasileira) e 216 (direito ao patrimônio cultural);  a Lei Federal nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial, especialmente no art. 1º, inciso IV [direito à autodefinição] e art. 31 [direito a terra]); o Decreto Presidencial nº 4887/2003 (regularização de territórios quilombolas); e o Decreto Presidencial nº 6.040/2007 (povos tradicionais).
A Convenção nº 169 da Organização Internacional
do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989, foi recepcionada, no Brasil, pelo
Decreto Legislativo do Congresso Nacional nº 143/2002, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 5051, de 19 de abril de 2004. Esta Convenção dispõe em seu art. 14 que “deverão ser reconhecidos os direitos de propriedade e posse dos povos em questão sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Além disso, no trato à instituição das identidades dos povos, assegura que “A consciência de sua identidade indígena ou tribal [e quilombola] deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção” (cf. Parte 1 – Política Geral, art. 1º, item 2, da Convenção 169/OIT).
No direito constitucional brasileiro, o artigo 68 do ADCT/CF[1988] inscreve que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, CF, 1988, art. 68, ADCT).
No contexto atual, as comunidades quilombolas – os quilombos -, são grupos étnicos, predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias (cf. www.incra.gov.br/quilombos. Acesso em: 19 Janeiro.2012).
O Decreto Presidencial nº 4.887/2003, de 20.11.2003, que ”regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, assim conceitua sobre a identidade de comunidade quilombola:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida;
Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.
(BRASIL, 2003, Decreto nº 4887, art. 2º caput e § 1o , grifo da citação).
O Decreto Presidencial nº 6.040/2007, que “Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”, além de outros elementos de direitos, traz elementos conceituais de identidades e de lugares, em cujos assentos as comunidades quilombolas são destinatárias de seus conceitos, princípios, objetivos e instrumentos. Para este Decreto, compreende-se por
Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.
No Programa Brasil Quilombola, “[...] o Conceito de quilombo atravessa o tempo [...]. Hoje, são territórios de resistência cultural (BRASIL, 2005, p.6;  Introdução, - grifo da citação).
Por fim, o projeto de construção das Identidades nos quilombos e dos povos quilombolas deve ser auscultado no interior do debate sobre a construção histórica da sociedade brasileira, com os aportes teóricos do momento e no contexto das lutas sociais em movimentos contínuos e incessantes. No trato da especificidade africana no Brasil, Munanga (2008) assinala que
A análise da produção discursiva da elite intelectual brasileira do fim do século XIX ao meado deste deixa claro que se desenvolveu um modelo racista universalista. Ele se caracteriza pela busca de assimilação dos membros dos grupos étnico-raciais diferentes “na raça” e na cultura do segmento étnico dominante da sociedade. Esse modelo supõe a negação absoluta da diferença, ou seja, uma avaliação negativa de qualquer diferença, e sugere no limite um ideal implícito de homogeneidade que deveria se realizar pela miscigenação e pela assimilação cultural. A miscigenação tanto biológica quanto cultural teria, entre outras consequências, a destruição da identidade racial dos grupos dominados, ou seja, o etnocídio. (MUNANGA, 2008, p.103).
O projeto político do branqueamento na sociedade brasileira, concebido pela elite do País como elemento estruturante do Projeto Civilizatório da Nação, pressupunha o desaparecimento das africanidades negras através da mestiçagem e da miscigenação:
[...] O negro puro diminui de número constantemente. Poderá desaparecer em duas ou três gerações, no que se refere aos traços físicos, morais e mentais. Quando tiver desaparecido, estará seu sangue, como elemento apreciável mas de nenhum modo dominante, em cerca de um terço do nosso povo; os dois terços restantes serão brancos puros. [...] E o problema negro terá desaparecido. [...] – (SKIDMORE, Thomas. apud MUNANGA, 2008, p.105)
Este projeto civilizatório, por sua vez, estabelece nexos com aquele mesmo e idêntico ethos do projeto civilizatório eurocêntrico para as Américas.
Com o início do colonialismo na América inicia-se não apenas a organização colonial no mundo mas – simultaneamente – a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória (MIGNOLO, 1995, apud LANDER, 2005, p.26) e do imaginário (QUIJANO, 1992, apud LANDER, 2005, p.26). Dá-se início ao longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX e no qual, pela primeira vez, se organiza a totalidade do tempo e do espaço – todas as culturas, povos e territórios do planeta, presentes e passados – numa grande narrativa universal. Nessa narrativa, a Europa é – ou sempre foi – simultaneamente o centro geográfico e a culminação do movimento temporal. Nesse período moderno primeiro/colonial dão-se os primeiros passos na “articulação das diferenças culturais em hierarquias cronológicas” (MIGNOLO, 1995:xi, apud LANDER, 2005, p.26).
A construção desse projeto civilizatório “tem como pressuposição básica o caráter universal da experiência européia [...] e institui-se uma universalidade radicalmente excludente” (LANDER, 2005, pp.26-27). Nessa perspectiva, processa-se uma filosofia universal, uma história universal e uma narrativa dessa história universal. Ato contínuo, “a história é universal como realização do espírito universal [hegeliano], mas desse espírito universal [hegeliano] não participam igualmente todos os povos” (op cit, p.29).
Os ethos destes dois projetos acima – que tamanha aproximação teórica e prática nos permite pensá-los com um único projeto – nos sugerem tratar de um possível ethos comum da eugenia surgida na Inglaterra, na segunda metade do século XIX, sob o empreendimento científico de Francis Galton, considerado o pai da eugenia, disseminado no Brasil a partir de seu interlocutor de maior expoente no País, o médico Renato Kehl, bem como por mediação de políticos e intelectuais brasileiros que sustentaram teorias biologizantes e pensamentos sociais racistas com o propósito de “melhoramento da raça humana” e respectivo aniquilamento de sujeitos, socialmente, indesejáveis (DIWAN, 2007).
A eugenia, “com status de disciplina científica, objetivou implantar um método de seleção humana baseado em premissas biológicas” (DIWAN, 2007, p.10). Esta lógica dita científica se alinha ao etnocentrismo já presente nos alicerces do projeto eurocêntrico de colonialismo nas Américas e no Brasil, em cujo centro a elite branca colonial proclama e reivindica para si a referência biológica, cultural e civilizatória dela própria como sendo a única desejável para todos os outros povos. Os não-brancos, especialmente os índios (concebidos como “a selvageria”) e os negros africanos e afro-brasileiros (concebidos como “a barbárie”), no Brasil, gozariam de aniquilamento de seus patrimônios biológicos, culturais e civilatórios.
Este registro histórico, portanto, não me será afastado da memória do debate teórico e das observações empíricas, em se tratando dos processos de construção, determinação, autodeterminação e ressignificação dos marcadores identitários e das territorialidades afrodescendentes e quilombolas, no Brasil e no Piauí, nem as resistências materiais e simbólicas aos ethos e às operações dominantes, antigas e recentes.
Portanto, esse ponto de vista eurocêntrico é um preconceito estruturante e uma espisteme particular determinada, com os quais nós não somos obrigados a compartilhar. As expressões das vidas, dos saberes e fazeres das africanidades no Brasil, e os sujeitos enunciadores destas, não são obrigados a permanecer nesse confinamento elaborado e apropriado pelas elites brasileiras.
A partir da atenção ao ethos desse projeto civilizatório, criticado em Munanga (2008), Lander (2005) e Diwan (2007), observarei as relações que possam indicar os acionamentos das identidades que se inscrevem na circularidade da comunidade pesquisada, com acontecimentos e sujeitos relacionais no cenário histórico alhures e aqui-e-agora.
De outro lugar, Alfredo Wagner Berno de Almeida, Mestre e Doutor em Antropologia Social, com elástica experiência em pesquisas sobre e com povos tradicionais, etnicidade, conflitos, movimentos sociais, processos de territorialização e cartografia social, postula uma âncora central para todo o processo que se efetivará a pesquisa sobre esta temática específica, qual seja:
[...] o ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas com os grupos sociais e as agências com que interagem. Este dado de como os segmentos sociais chamados ‘remanescentes’ se definem é fundamental, porquanto foi dessa forma que a identidade coletiva foi construída e afirmada. O importante [...] é como os próprios sujeitos sociais se definem e quais os critérios político-organizativos que norteiam as suas práticas e mobilizações que forjam a coesão em torno de uma certa identidade. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos a partir dos próprios conflitos pelos próprios sujeitos e não necessariamente aqueles produtos de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes (ALMEIDA apud SUNDFELD (0rg), 2002, pp.79-80).
Por derradeiro recurso epistemológico, neste ensaio, lanço mão à noção das “Epistemologias dos Sul”, sistematizadas por Boaventura Santos (2010), em cuja âncora eu reservo a possibilidade de desconstrução de fundamentos e conceitos que eu estou antecipando neste, haja vista a problematização da unidade científica cartesiana e o reconhecimento das epistemologias dos povos oprimidos, por esta abordagem do autor, com a qual postula pelas formas diferenciadas de produção de conhecimento na perspectiva do oprimido, colonizado, das minorias, que tematizam o reducionismo epistemológico que justifica e reforça processos políticos assimétricos.
Em suma, constatamos a construção de uma identidade enunciada pela alteridade. As múltiplas e diversas nações e etnias constituídas em territórios do continente africano tornam-se, pelo enunciado do sujeito dominador da colonização, como sendo apenas “africano”, “negro”, “uma raça”, “escravo” e uma “coisa”, negando-lhes o direito sobre si mesmo e o direito a um lugar autodeterminado. A construção das identidades afro-brasileiras, tal como a discutimos hoje, trata-se do resultado combinado de um conjunto de processos e instrumentos de resistências da comunidade de africanos e afrodescendentes, com direito ao lugar autodeterminado.
Uma das formas mais divulgadas dessa resistência – mas não a única nem a mais importante, a meu ver – repousa sobre os movimentos dos quilombos, protagonizada pelo sujeito enunciado como sendo quilombola.
O quilombo, hoje, está pautado como lugar autodeterminado pelo sujeito enunciador e enunciado coincidente – os povos dos quilombos -, mas também admitido – às vezes reconhecido – pela alteridade.
A começar pela abolição formal do regime de escravização, em 1888, podemos observar as narrativas pelo viés da concessão do direito por ato do agente colonizador, mas também as narrativas que a traduz como sendo um estágio resultante das lutas de resistências postas pela população negra ao regime escravocrata e as reivindicações de todas as abolições necessárias à recomposição de seu lugar e de sua dignidade na sociedade dinâmica.
Neste cenário, uma intervenção razoável, parece-nos vem sendo dita pela história da população autodeclarada negra afro-brasileira, desde seus primeiros passos em solo deste país: resistência sempre, mediada por estratégias contextualizadas no tempo e no espaço, e nas relações. No entanto, intelectuais e outros atores, inclusive a academia, não nos parece razoável deixar de formular questões sobre este debate e suas controvérsias.
No interior dessas institucionalidades, tenho observado modos de abordagens e práticas profissionais diferentes, incluindo casos antagônicos, no trato da marcação e demarcação das identidades e territórios quilombolas. Um caso observado materializa-se em atuação de Antropólogo do INCRA-PI, em que o profissional da antropologia parece distanciar-se bastante das prerrogativas contextualizadas do sujeito constitucional em pauta, bem como do saber, do fazer e do saber-fazer antropológicos de melhor validade na literatura atual, inclusive distração intelectual e orgânica quanto àqueles critérios e condutas orientadas pela Associação Brasileira de Antropologia – ABA, no que diz respeito à identidade e ao território quilombola. Há uma hipótese de negativa expressa quanto ao direito de autodeterminação da marcação e demarcação identitária e territorial.
Para dar maior vazão ao debate teórico-metodológico contextualizado e cientificamente orientado, eu vou estudar essa temática sob o Projeto de PesquisaIDENTIDADES SOCIOCULTURAIS NO TERRITÓRIO DA COMUNIDADE RURAL QUILOMBOLA CUSTANEIRA, MUNICÍPIO DE PAQUETÁ DO PIAUÍ – PI, BRASIL”, aprovado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia, nível de Mestrado, da Universidade Federal do Piauí – UFPI, para o biênio 2013-2015 - Área de Concentração Processos, Atores e Desigualdades Sociais, Linha de Pesquisa Territorialidades, sustentabilidades, ruralidades e urbanidades.  
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VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, pp.494-495, verbete “Quilombos”.
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[1] Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI (Brasil); Pós-Graduado [Lato Sensu] em Educação, Culturas e Identidades Afrodescendentes pela Universidade Federal do Piauí – UFPI/Núcleo de Pesquisa sobre Africanidades e Afrodescendência/ÌFARADÁ; Licenciado em Filosofia pela Faculdade Entre Rios do Piauí – FAERPI (Brasil). E-mail: aureojoao@yahoo.com.br.
[2] O Projeto Genoma Humano é um empreendimento internacional, iniciado formalmente em 1990, com os objetivos de identificar e fazer o mapeamento do DNA do corpo humano, determinar as sequências dos 3 bilhões de bases químicas que compõem o DNA humano, e armazenar essa informação em bancos de dados [...] e torná-los acessíveis para novas pesquisas biológicas. [...]. Os maiores programas desenvolvem-se na Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coréia, Dinamarca, EUA, França, Holanda, Israel, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Suécia e União Européia. Disponível em <http://www.portaleducacao.com.br/biologia/artigos/23348/projeto-genoma-humano?>. Acesso em: 30 Ago.2013. Ver também . .
[3] Define os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor”, com as alterações trazidas pelas Leis nº 8.081/90, nº 9.459/97, nº 12.288/2010.
[4] Refiro-me à noção evolucionista que postulava que humanos africanos e afrodescendentes – e índios “puros”, mestiços resultantes das interações reprodutivas entre “brancos” e “negros”, e “índios - não dispunham de desenvolvimento biológico (constituição cerebral) e psíquico em nível igualável aos humanos brancos europeus, expostas em: RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Apresentação e notas de Yvonne Maggie e Peter Fry. Ed. Fac-símile. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Editora UFRJ, 2006. 140p. Conferir também em RODRIGUES, Nina. As Raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil: com um estudo do Professor Afranio Peixoto. Biblioteca de Cultura Scientifica. Editora Guanabara, s/d. 211p. Disponível em . Acesso em: 08 jul.2013.
[5] “De uma parte, o escravo sempre foi o inimigo número um da escravidão, resistindo de todas as formas às tentativas de reduzi-lo ao estatuto de mera máquina produtiva. E isto significa que, ao contrário do que disseram e repetiram diversos estudiosos dos problemas brasileiros, os negros foram sujeitos ativos de sua própria história. De outra parte, que a luta pela abolição se deu através de uma ampla aliança e de focos diversos, das senzalas a segmentos significativos do Exército, de negros fugidos a grupos abolicionistas, de quilombos ao parlamento”, conforme discorre Gilberto Gil na obra “25 anos 1980-2005: Movimento negro no Brasil […]” (GARCIA, 2006, p. 9). Hélio Santos se refere ao movimento negro como sendo o “movimento sociopolítico mais antigo desse país e que se instala na Terra de Santa Cruz ainda no distante século XVI. Consistentemente, continua-se a insistir na luta por cidadania plena – nem mais nem menos -, como se sonhou e viveu por um século em Palmares” (op. cit, p.17).
[6] Em sentido genérico “A diáspora é um movimento populacional descontínuo que tem por efeito a fundação de estabelecimentos separados da população-mãe” (Coleção História Geral da África, 2010, volume V, p.69). Refiro-me aos processos de deslocamentos compulsórios impostos e controlados pelo colonialismo europeu aos povos do continente africano, com o objetivo de estruturar um regime de produção e de sociedade à base da escravização daquelas populações africanas, na Europa e nas Américas (também houve no Oriente Médio e na Ásia), de cujo empreendimento e processo o Brasil (a classe dominante deste) foi patrocinador desde 1500 a 1888, quando se encerra formalmente a escravidão no País. Estima-se, na historiografia brasileira, que entraram no Brasil cerca de seis milhões de negros africanos em condição de escravizados, no período, de um total estimado entre “11 milhões 15.400.000” ou, ainda, “em termos gerais, a aproximadamente 22 milhões de indivíduos exportados da África negra em direção ao resto do mundo, entre 1500 e 1890” (Coleção História Geral da África, 2010, volume V, pp.98-100). Mas também me refiro aos processos de deslocamentos compulsórios em desfavor da população afrodescendente/afro-brasileira após o ato de abolição de 1888 até os dias atuais, em decorrência das disputas e concorrências pela posse e propriedade da terra, e pela detenção, concentração e uso desta pelo latifúndio. Ademais, refiro-me aos deslocamentos voluntários típicos de processos migratórios, que a população negra afro-brasileira também tem recorrido, no povoamento do Brasil.
[7] cf. BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philipe; STREIFF-FENART. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Tradução Elcio Fernandes. 2.ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2011, pp.183-227 (Parte II).
[8] cf. DÓRIA, Siglia Z. O Quilombo do Rio das Rãs. In: Terra de Quilombos. Associação Brasileira de Antropologia, 1995.

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