QUANDO FALTA SOLIDARIEDADE COLETIVA,
A VIDA INDIVIDUAL DE ALGUNS FICA SEM GRAÇA
Áureo João. 43. Teresina/PI, 03/11/2010.
Hoje, quarta-feira, 03/11/2010, eu fiz um gesto de solidariedade imediatista e, depois, pedi a graça!!!
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Por volta das 19:00h, nas imediações do cruzamento das avenidas Odilon Araújo e Castelo Branco, no Bairro Piçarra, entrei em um ônibus de transporte urbano coletivo que vinha do bairro Redenção em direção ao centro de nossa Capital.
Em gesto costumeiro, entrei no ônibus, entreguei um vale-transporte ao cobrador, pelo pagamento da viagem urbana, passei a roleta e me sentei numa cadeira à metade do comprimento do utilitário.
Já sentado, observei um jovem contando moedas na mão e entregando ao cobrador do ônibus, dizendo “só tenho esse...”. O cobrador-de-ônibus, de seu posto, conferiu as moedas e disse “falta vinte e cinco”. E, fazendo sinais de resposta negativa com as mãos e com a cabeça, para o jovem – e com o pé travando o giro da roleta a fim de impedir a passagem do moço -, devolveu as moedas ao jovem e sentenciou: “não pode”...; “é lei”...; “não pode passar sem a passagem inteira”.
Barrado pela falta de vinte e cinco centavos e pela sentença do cobrador-de-ônibus, o jovem se recolheu e se sentou em uma cadeira em frente ao seu julgador, persistindo nos argumentos para lograr sua credencial de passagem por aquele objeto que lhe parecia intransponível. O cobrador, ancorado em seu poder de veto circunstancial, apontava com seu dedo para uma câmera interna do ônibus e declamava seu texto invariável: “não pode”...; “é lei”...; “não pode passar sem a passagem inteira”.
Aquela situação, ainda que possa parecer absurdo especular, parecia-me um cárcere privado em movimento. O cobrador não deixava o jovem passar pela roleta. O motorista não parecia interessado em libertá-lo pela porta dianteira. O ônibus seguia rodando e o jovem sem nenhum poder efetivo sobre a situação.
À distância em que eu me achava, fiz uma “avaliação” estereotipada do perfil do jovem, cuja aparência me permitiu “concluir” que poderia ser um operário de uma oficina mecânica, da construção civil ou outro serviço profissional equivalente, sem dinheiro suficiente para custear seu retorno para casa, depois de um dia de trabalho pesado. Além disso, o jovem não demonstrava sinais de embriaguês, uso de “drogas” ou qualquer outra variação de sua lucidez. Ele é do tipo que a gente chama de “pardo” e carregava algumas sacolas.
Tocado pelo sentimento de injustiça à vista e pelo intuito da solidariedade imediata, coloquei a mão no bolso, tirei um vale-transporte e fiz gestos ao cobrador-de-ônibus, como sinal de pagamento de fiança da infração cometida pelo jovem e imediata revogação da “lei” que lhe mantinha naquele cárcere físico e moral. Foi algo mágico; o cobrador liberou o moço imediatamente. O jovem me encarou, fez sinal com o polegar para cima e me agradeceu pelo menos três vezes por aquele gesto; em seguida, foi sentar-se numa cadeira à parte traseira do ônibus.
O problema estava resolvido, pensei!!!
Porém, assuntando sobre a ocupação demográfica em Teresina, ancorei-me no raciocínio de que o centro da Capital não é localização típica para habitação/dormitório residencial, especialmente de pessoas de baixo poder aquisitivo.
Por esta premissa, cheguei às “minhas conclusões” de que o jovem operário ainda precisaria pegar uma segunda condução em transporte coletivo, até concluir seu percurso de retorno ao seu ponto de endereço domiciliar, localizado em alguns dos bairros da Capital. No entanto, não tendo dinheiro para pagar a passagem no ônibus coletivo, o constrangimento já estava certo e determinado.
O espírito de solidariedade individual e imediata logo indicou a melhor sentença para a situação localizada e direta. O mais razoável, para dormir tranqüilo esta noite, recomendava-me exercer um segundo gesto em complemento ao primeiro antecedente. Muito simples: com um vale-transporte a situação estaria sob controle; com mais um acréscimo, o dia seguinte daquele operário poderia começar melhor do que este final de jornada diária.
Na Avenida Frei Serafim – centro da cidade -, eu também precisava desembarcar daquele ônibus para, em seguida, embarcar em outro com destino à minha morada, na periferia.
Ao me dirigir à porta de desembarque do ônibus, notei o jovem sentado numa cadeira do lado oposto à saída. Imediatamente perguntei: “você tem... como chegar até sua casa... no seu bairro?”
Simultâneo ao gesto do jovem para responder minhas perguntas, eu puxei minha carteira do bolso e tirei dois vales-transporte para entregar ao jovem. Já com os vales na mão para entregá-lo, eu ouvi sua resposta: “Não. Eu não tenho casa. Moro na rua. Não tenho família, não tenho nada!. Vou dormir ali na calçada da Pague-Menos”.
Entreguei os dois vales-transporte que já estavam na minha mão estendida. Virei as costas para o jovem e me posicionei na porta do ônibus para o desembarque no ponto-de-ônibus seguinte. Eu não disse mais nada e não perguntei mais nada. Fiquei sem graça!!! Perdi a graça!!!
Desembarquei daquele ônibus e embarquei num sentimento de impotência e indignação!!!
No plano individual, eu tinha o vale-transporte, ingênua solução para uma situação sequer diagnosticada. No mesmo plano individual, eu não tenho um endereço para doar àquele “sem-endereço”; não tenho uma família para doar àquele “sem-família”; não tenho um posto de trabalho para aquele “sem-posto-de-trabalho”, “sem-dinheiro”, “sem-presente”, “sem-dignidade” e, talvez, “sem-futuro”...
Neste sentido, quando falta a solidariedade coletiva, como elemento intrínseco do modelo de sociedade em que vivemos, a vida individual de alguns (muitos) fica sem graça!!! Perda a graça!!! Perde o riso! Perde o sono! e... perde...!
A caridade individual e imediata é pouco útil ou mesmo inútil, quando o gesto não alcança a alteração da causa que deu origem à suposta necessidade da nossa caridade!!!
A falta de dignidade não pode ser banalizada em nossa existência, nem o processo de “vigiar” e “punir” os desprovidos de dignidade pode ser assimilado e internalizado pelas pessoas que pensam e agem, de modo crítico, na vida e com a vida em sociedade.
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