terça-feira, 2 de novembro de 2010

VIOLÊNCIA. A VIOLÊNCIA NOSSA DE CADA DIA: A JUVENTUDE POBRE NA LINHA DE TIRO

A violência nossa de cada dia: a juventude pobre na linha de tiro



Marcondes Brito
Mestrando em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí – UFPI.

Valéria Silva
Doutora em Sociologia Política. Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas - UFPI



As ideias estão no chão
Você tropeça e acha a solução
Titãs


O presente artigo discute alguns apontamentos sobre a violência urbana na atualidade, detendo-se sobre os modos como a mesma afeta os jovens. Apresenta breve reflexão sobre a natureza das ações estatais dirigidas – ou não - a estes segmentos sociais e das relações que estabelecem com a produção daquilo que pretendem enfrentar: a violência em meio juvenil. Enfoca, por fim, os jovens pobres e marginalizados de Teresina-PI, segmento distanciado das políticas públicas de assistência e proteção, de uma forma geral, porém muito próximo ou, mesmo, inserido nas ações de segurança e repressão implementadas pelas instituições públicas.

Na apreciação do fenômeno aludido, apoiamo-nos no entendimento construído por Velho (2000), no qual o autor afirma que a violência não se esgota apenas no uso efetivo da força física, mas também na possibilidade ou ameaça da sua concretização por vários meios, inclusive o institucional. Este conceito de violência ganha sentido em um contexto grupal, quando entendemos como se constitui o conceito de juventude e, especificamente, de juventude pobre, desassistida, e como esta relação se desdobra na atualidade.

Segundo Irene Rizzini (1997), no Brasil, em meados dos Séculos XIX e início do XX, percebe-se, claramente, que a criança mais presente na literatura era aquela, aos olhos da elite, ‘carente da ajuda e proteção do Estado’ para ser “corrigida”, “reeducada”. Isto é, a literatura tratava da criança pobre.

O Brasil, uma nação em surgimento, buscava, na época, na Europa do século XIX e EUA do século XX, modelos e fórmulas capazes de desencadear, aqui, um processo desenvolvimentista. Parte importante deste propósito se constituía da importação de modelos e teorias para combater a “degradação de sociedades modernas”, como as teorias eugenistas, evolucionistas, que, a partir de Charles Darwin, expandiram-se por todo o mundo. Este advento se verificou tanto pelas proposições trazidas pela genética social quanto pela validação construída por um discurso de verdade científica, de cunho racista e criminal, de Paul Broca e Cesare Lombroso, autores que fomentavam, no bojo dos seus argumentos a idéia de que a pobreza trazia o atraso da sociedade e os seus vícios, a degenerescência da sociedade. Neste contexto, o papel dos intelectuais seria de contribuir com seu saber, para a implementação de políticas e ações, no sentido do enfrentamento da degeneração social ocasionada pelo trinômio pobreza - ociosidade - degradação social.

Esses discursos influenciaram vários intelectuais brasileiros, tais como Franco da Rocha, Nina Ribeiro, Silvio Romero, Henrique Roxo, dentre outros. Estes intelectuais, além da contribuição teórica que prestaram, assumiram também cargos públicos, oportunidade em que colocaram em prática suas idéias, disseminando-as dentro e fora das instituições. Tais intervenções fizeram com que o ideário de suas teses passassem a fazer parte das subjetividades brasileiras, mas com uma particularidade: as teorias racistas e discriminatórias voltavam-se principalmente, para os pobres, que eram a maioria da população. Como nos diz Rizzini (1997, p. 65) “não por acaso pobreza e degradação moral estavam sempre associadas. Aos olhos da elite, os pobres, com sua áurea de viciosidade, não se encaixavam no seu ideal de nação”, entendimento endossado também pelos pressupostos da biologia social. A propósito, afirma a autora que “a fantástica expansão da medicina, bem como sua ramificação no campo jurídico (mais ligado à medicina legal) e à conjugação dos saberes bio-psico-sociais trataram de redefinir o humano e explicar a etiologia dos medos que afligem o homem e a sociedade; o corpo e a alma” (1997, p. 69.), chamando a si a autoridade para a discriminação dos modelos sociais, dos processos de normalidade e patologia.

Essas premissas são reafirmadas e detalhadas também por Cecília Coimbra (2003, p. 23.), quando aponta que “a degradação moral” era especialmente associada à pobreza e percebida como uma epidemia que se deveria tentar evitar. Ou seja, “todas essas teorias estabelecem/fortalecem a relação entre vadiagem/ociosidade/indolência e pobreza, bem como a de pobreza e periculosidade/violência/criminalidade”.

Não é à toa que, da união destas duas abordagens, a médica e a jurídica, embaladas pela influência das teorias referidas surge, em 1927, a primeira lei brasileira para a infância e a adolescência, o primeiro Código de Menores e com ele a adoção da terminologia menor. Entretanto, a terminologia não possuía orientação cronológica, não era empregada para separar e/ou diferenciar segmentos por faixas etárias. A denominação concretizava uma diferenciação que levava em consideração eminentemente a condição de pobreza do indivíduo, imbricando, mais uma vez os pressupostos bio-sociais na compreensão dos segmentos juvenis marginalizados.

Encontrando suporte nestas idéias gerais vindas da Europa é que o higienismo penetra no Brasil do final do Século XIX e início do Século XX. Este movimento extrapola o campo da Medicina e se dissemina, em toda a sociedade brasileira, alcançando especialistas como pedagogos, arquitetos, urbanistas e juristas, dentre outros. (COIMBRA,1998).

Do ponto de vista de sua história, podemos dizer que, em território brasileiro, o movimento higienista alcançou seu apogeu na década de 1920, quando ocorreu a criação, por Gustavo Riedel, da “Liga Brasileira de Higiene Mental”. Fundamentados nas teorias racistas, no darwinismo social e na eugenia, pregava o aperfeiçoamento da raça e colocava-se publicamente contra os negros, mulatos e mestiços e, por consequência, contra a maior parte da população pobre brasileira.

Entre os higienistas da época, havia um consenso acerca da “missão patriótica”, que se atribuíam na construção de uma ”nação sadia e limpa”. Acreditavam no conceito de “degradação das sociedades modernas” e buscavam estratégias para executar um “saneamento moral” da sociedade brasileira. Como dissemos, associavam a “degradação moral” à pobreza, pois esta, com seus vícios, não condizia com o ideário de Nação, que, na época, buscavam produzir.

A “degradação moral”, vista como uma epidemia, implicava também a inevitabilidade do contágio, o que preocupava, sobremaneira, os higienistas. Uma vez a “doença” presente nas famílias pobres, esta endemia, por conseguinte, colocava toda a sociedade em risco. Fecha-se, portanto, um círculo vicioso, produz uma vez levado às últimas consequências, a conclusão de que sociedade “boa”, “saudável”, dependeria da eliminação dos pobres. E isto, não pelo extermínio da pobreza como problema social e/ou construção de uma sociedade democrática, mas pela eliminação das pessoas pobres.

A complexidade do pensamento higienista também chegou à consideração dos espaços públicos no seu todo, onde assumiram o aspecto de um corpo, de um organismo, demandando, então, cuidado, tratamento, a fim de curá-los da “doença” que se abatera sobre os mesmos. Para reforçar a gravidade de tais propostas de “reforma social”, vejamos o que nos diz Coimbra:
 
Partindo, portanto, da ideia de um corpo saudável, limpo, asséptico e disciplinado, o desenho urbano deveria prever cidades que funcionassem da mesma forma. Palavras como ‘artérias’ e ‘veias’ entraram para o vocabulário urbano no século XVIII, aplicadas por projetistas (...) que passam a pensar o funcionamento das cidades a partir dos ensinamentos médicos da época. Desde aquele século domina o pensamento científico a chamada ‘teoria dos fluidos’, onde o ar e a água são considerados os portadores de emanações fétidas e pútridas, conhecidas como ‘miasmas’ e transmissores de doenças como a peste, o escorbuto e a gangrena (COIMBRA, 1998, p. 80).
 
Assim posto, o espaço público surge como o lugar do perigo biológico e social, configurando-se também como “grande escola do mal”, uma vez ocupados pelos “menores” (compreendendo os “menores” infratores também os jovens), a infância perigosa e a infância em perigo. Os últimos seriam os pobres e os desassistidos, expostos aos outros “elementos”, ou seja, aos criminosos, degenerados e irrecuperáveis, que ocupavam os espaços urbanos de então.

É neste contexto que durante a Primeira República, consubstancia-se o entendimento de menoridade não mais vinculada a correlações etárias, mas associada ao conceito de marginalidade, situações de abandono ou de delito. O abandono é visto como o prenúncio do risco do delito, justificando o tratamento desta condição como caso de polícia e, portanto, suscetível de vigilância e punição, com vistas à manutenção da ordem então vigente.

Por outro lado, para Coimbra (1998), a adoção do termo “menor” não designava menores de quaisquer classes sociais, mas apenas diferençava um determinado segmento de menores: o pobre. Esta marca ganhou força, enredou-se no imaginário social e se impõe, até hoje, mesmo quando, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aboliu tal terminologia do seu texto legal. Infância e juventude, criança e adolescente são as designações utilizadas em substituição à categoria “menor”.

Assentado nesta imagem de crianças e jovens abandonados, desprotegidos e vulneráveis como elementos perigosos, o Código de Menores de 1979, dando continuidade à associação abandono-pobreza-marginalidade, disciplinou postura institucional que não se limitava apenas à ideia de correção de conduta, mas também – respondendo a uma política de segurança – de reintegração, coadunada com a proposta da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBM).

Podemos observar que o modelo que propugnava a salvação do país pela salvação da criança e dos adolescentes, já anteriormente utilizado pelo comissário de vigilância, assumia outro “rosto”, nos anos 60 e 70 do século XX, com a vigência da Doutrina de Segurança Nacional e com o fortalecimento do tecnicismo. Dispositivos “científicos” eram utilizados tanto para classificar quanto para justificar o “tratamento” recomendado, em cada caso, por profissionais de diversos setores, como assistentes sociais, psicólogos, médicos, advogados, dentre outros. A medicina higienista, agora aliada ao judiciário, não media esforços no sentido de purificar a sociedade.

A perspectiva acima apontada gerou um importante impacto na constituição das subjetividades juvenis, em suas identidades, nas suas sociabilidades, de uma maneira geral. Encontramos que, no contexto da doutrina de segurança nacional, tudo o que fugia do padrão instituído era considerado perigoso e subversivo, o que levou ao delineamento de duas categorias de juventudes, aos olhos do poder que as criou: a que subvertia e a danosa. Ambas eram consideradas como perigosas, pois entravam em rota de colisão com as pautas sociais consideradas corretas, no sentido do desenvolvimento almejado, da ordem constituída, da moral estabelecida, da família estruturada.

Em meio a este ranço cultural se gestou uma ligação perversa da juventude pobre à criminalidade, tal como desenvolveu Foucault (1987). Também se engendrou a lógica da punição – ainda em voga e com muita força nos tempos atuais –, que passou a permear as subjetividades daquele que julga, dando forma concreta à falsa ideia de que o ato de proteger passa pelo gesto de encarcerar, vigiar e punir.

Por outro lado, ao institucionalizar a medida punitiva da reclusão, do apartheid como a última solução para lidar com os problemas sociais enfrentados pelo segmento infanto-juvenil, o Estado brasileiro produziu uma visão distorcida do que deveria ser uma prática pedagógica, educativa, desenvolvida para/com os seus jovens e crianças. Em verdade, as políticas com este corte revelaram a assunção formal da desistência, do abandono destes sujeitos pelo Estado e pela sociedade.

Segundo Edson Passetti, a criação da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, fundamentada no pensamento da Escola Superior de Guerra, (ESG), mostrou-se, de um ponto de vista, como um eficaz recurso para equacionar o problema social enfrentado – por um lado demonstrando o desenho da ação estatal ante o problema social em si e, por outro, apontando como esta escolha vinha se ajustar aos mecanismos de controle acionados pelo próprio Estado, correspondendo a um determinado perfil de organização política. Como se pode ver, a ação do Estado brasileiro consistiu, desde o princípio, em privilegiar o desenvolvimento de políticas e programas sociais, que consolidaram, em nome da defesa do bem-estar dos ditos infratores, uma conduta intervencionista/autoritária, de natureza higienista, fomentanto um perfil repressor e, ao mesmo tempo, conciliador junto à sociedade – haja vista que um dos objetivos deste comportamento era apresentar uma satisfação à opinião pública, no sentido da paz e da ordem social.

Esta forma de gestão intervencionista revela e reforça a ação burocrático-estatal em uma linha de continuidade, que sustenta e é sustentada pela correlação abandono-pobreza-delinquência, que teve como efeito, desde a era Vargas, o acirramento de implantação de políticas sociais como se fossem de bem-estar no sentido amplo, frequentemente ancoradas em uma perspectiva autoritária de correção, higienização, controle, ordem. Outro aspecto que se constata, na história política do Brasil República, é que, tanto em períodos ditatoriais como em períodos de distensão “democrática”, a intervenção em nome do bem-estar acompanhou o ideal de desenvolvimento, intimamente ligado à noção de segurança, garantindo a proliferação de interesses da burocracia estatal, coadunados, confortavelmente, com o cunho autoritário da gestão da vida.

Como dito, este não foi um fenômeno próprio apenas do contexto repressivo-militar brasileiro. Na atualidade, a despeito dos avanços inegáveis do ECA, por exemplo, o seu texto ainda traz a punição/violência travestida de medida educativa. Sociedade e Estado brasileiros permanecem adotando este tipo de abordagem como legítima, para tratar das realidades infanto-juvenis socialmente produzidas e mais presentes em contextos de pobreza e exclusão. Por decorrência, desmistificam toda a normativa construída em nome da proteção e da promoção de crianças e adolescentes.

Como sabemos, a gestão pública e suas políticas, assim como os demais fenômenos sociais, produzem desdobramentos previsíveis e imprevisíveis, desejados e indesejáveis, que fogem ao controle absoluto dos gestores, e também da sociedade. No nosso entendimento, um dos resultados produzidos pela intervenção estatal de natureza disciplinadora/punitiva – por fim, de violência – foi a contribuição efetiva para a geração de um contexto social propício à real assunção, pelos jovens, do papel violento a eles atribuídos. Nesta perspectiva, os jovens têm protagonizado as cenas que alimentam a mídia espetacular, ora como estratégia final de sobrevivência material, ora como última medida de sobrevivência física, ora como único recurso social disponível de afirmação de suas subjetividades.
 
Sobre a produção de juventudes violenta(da)s
 
Pensar o sujeito, no mundo, implica refletir sobre as relações intersubjetivas no complexo das materialidades da vida, inclusive aquelas de natureza social e política, nas quais interesses diversos estão em constante embate e as posições hegemônicas pontuando o tom das realidades experienciadas. Coimbra (2003), ao abordar o assunto, oferece uma reflexão sobre como os indivíduos são construídos neste processo de embates com o mundo exterior:
 
O cotidiano é esvaziado politicamente; as relações de opressão, as explorações, as diversas formas de dominação são invisibilizadas e atribuídas ao território do psicológico, fazendo parte do psiquismo e da vida interior do sujeito. Com forte apoio de argumentos moralistas [...] transformam-se em conflitos, sonhos, ilusões, fantasias e, mesmo, patologias. Estas, não somente são atribuídas ao indivíduo, mas estendidas especialmente a determinados segmentos sociais, como a pobreza e a todos aqueles que destoam das normas e modelos instituídos (p.7).

Desta perspectiva, aquilo que se produz, socialmente, é retraduzido enquanto responsabilidade individual, consubstanciando, portanto, um processo de vitimização do sujeito. Este agora tem a tarefa solitária de se colocar viável socialmente, uma vez que o problema é de ordem individual. O embate do sujeito, no mundo, dá-se em um front polissêmico, inseguro e desafiador, que dele exige complexas habilidades, talentos e recursos – estes, inclusive de natureza materiais, normalmente assegurados pela inserção, no mundo do trabalho. Para os jovens pobres, inseridos em realidades cruas e dispondo de restritas oportunidades, a tarefa se mostra agigantada.

Da problemática posta, um aspecto se faz mister destacar: o mundo capitalista contém uma tensão imanente. Impõe sua univocidade essencial, seu discurso universal, como única verdade. A “concorrência” é a tônica. Ao mesmo tempo, como um contrafactum, promete que aquele que passar pelo “buraco da agulha” alcançará a plenitude, que ganha o nome de “sucesso”, na linguagem que coloca a perspectiva econômico-financeira enquanto centro do diálogo, e o consumo como canal de intercomunicação. Este diálogo é possibilitado pelo universo das relações trabalhistas, difundindo, de forma cada vez mais intensa, a subjetividade do trabalho formal como aquela que expressa a verdadeira natureza do ser humano, e também como a única possível de se deixar existir.

Neste sentido, contextualizando como tal ideário tem sido alimentado na contemporaneidade, Loïc Wacquant (2005, p.5), nos diz que:
 
Por um lado existe a des-socialização do trabalho, por outro a transformação do Estado, e ambas empurram as pessoas a terem uma vida insegura. Então esta dupla insegurança objetiva, do lado do trabalho e do lado do Estado, que já não protege as pessoas da insegurança trabalhista, cria duas formas de insegurança. Uma é a insegurança social objetiva, causada pelo trabalho assalariado des-socializado, mas há também uma insegurança mental: quando o trabalho é inseguro, os indivíduos não podem mais projetar-se no futuro por não saberem se terão emprego no próximo mês, isso desestabiliza o mundo mental e cria um grande sentimento de ansiedade na sociedade. [...] Isto cria uma grande corrente de insegurança dentro da sociedade, relacionada à insegurança do trabalho e relacionada à não vontade do Estado de proteger dessa insegurança, o que gera uma demanda na população por estabilidade de vida.[grifo nosso] O Estado responde a esta demanda de estabilização fornecendo polícia e políticas penais. O Estado diz "nós não vamos mais dar um trabalho garantido, ou uma renda garantida, ou uma assistência social garantida, porque não é isso que o Estado faz agora, mas daremos um fim à população de rua e aos criminosos dos seus bairros, etc. Responderemos sua demanda por segurança social fornecendo segurança criminal.
 
Para a juventude pobre órfã do Estado e rechaçada pela sociedade, carente das relações familiares como mediação fundamental, sejam elas presentes ou ausentes (nas situações de abandono) – as contingências postas, em grande parte dos casos, são mais agudas e complexas do que ela pode administrar. No momento em que a vida está a lhes exigir definições existenciais (identidade sexual, formas de sobrevivência e de sustento, isto é, "profissionalização", inserção em grupos sociais etc), encontram-se em um contexto no qual existem poucas certezas, muitas indefinições e instabilidades. Estes jovens não sabem se terão comida no dia seguinte, se seus familiares e amigos estarão vivos ou quando serão vítimas da violência urbana, familiar, policial. A vida se torna algo incerto, produto absoluto do momento presente, palco de negociações sumárias, em torno das possibilidades do agora.

A radicalidade da situação posta dificulta o delineamento de um projeto de vida gerador de sentido à existência dos jovens. Retira-lhes qualquer segurança quanto ao futuro, enredados que estão no imediatismo da luta pela sobrevivência. Como não poderia deixar de ser, particularmente, imprime contornos específicos à forma como os jovens vivem e resolvem seus conflitos subjetivos e sociais.

Compungidos a uma determinada inserção social – na qual o ideário existente tem o trabalho como importante mecanismo de afirmação social e, além disso, adotado como critério de normalidade de conduta –, os jovens provindos dos setores empobrecidos se deparam com uma realidade efetiva de ausência de postos de trabalho/emprego, somados à fragilidade pessoal quanto aos requisitos cobrados para assunção das vagas que ainda são oferecidas. Neste mesmo contexto, são acossados a oferecer respostas a si mesmos e à família/comunidade/sociedade acerca da sua contribuição simbólica e material. O tráfico aparece para muitos como o lugar onde podem assumir a condição de sujeito ativo, lugar de ancoragem, de alguma segurança frente ao ambiente geral de insegurança produzida. Enquanto o Estado declina da responsabilidade e a sociedade dá as costas aos jovens pobres, o tráfico os recebe de braços abertos.

A realidade acima considerada tem feito com que os jovens apareçam diretamente implicados na ampla divulgação social, particular e fortemente através da mídia, da cultura da insegurança vivida nos tempos atuais. Termos como “violência”, “terror” e “medo” têm presença inarredável na retórica jornalística sensacionalista brasileira, que identifica a relação entre a sociedade e o crime com um estado de guerra. O crime ressaltado é o crime dos pobres, diga-se, dos jovens pobres. É em relação à “violência” da pobreza que a sociedade se encontra “refém”, “aterrorizada”, “afrontada”.

Em Teresina, encontramos uma situação emblemática. Fato como a aposição de grades, nas aberturas dos pequenos comércios das periferias sustenta o discurso sobre a prisão dos moradores e comerciantes, em função do medo difundido, advindo de ameaças, de boatos de origens incertas e, particularmente, os riscos que dizem correr em relação a grupos de jovens, as ditas ‘gangues’. Normalmente, constam das listas acusatórias dos programas policiais, sendo apontados, publicamente, como algozes de atos de violências na completa ausência de investigação, processo e julgamento.

Na sociedade autoritária, que insiste em retirar a visibilidade de vários segmentos sociais, quando se fala na “pessoa de bem”, faz-se referência à inclusão, à harmonia, ao trabalho e à família normatizada, enfim, realidades de apenas alguns grupos sociais, impostas aos demais. Esta forma societária ideologizada e hegemônica como norma é, para a imprensa e os planejadores da segurança pública, a sociedade, a “boa” sociedade, modelo que uma determinada visão de mundo busca implantar e sustentar, como a forma única de relacionamento entre agentes sociais. A má sociedade é a dos “bandidos”, dos “traficantes” e de todos aqueles que, de algum modo, desvirtuam este padrão de relacionamento social. Quaisquer outros modelos são desautorizados e indesejáveis, embora originários da complexidade desta mesma ordem. Frequentemente resultam da efetividade de ações que tomam corpo, a partir da ausência ou negação de outras práticas sociais pelo modelo hegemônico.

Assim, a síntese é inevitável: a boa sociedade é a dos burgueses, e a má sociedade é a de todos os outros. Aquela “é”, esta “não é”. No entanto, a estas duas construções de sociedade subjaz um jogo entre criador e criatura, no qual a sociedade da ‘maldade’ é gerada e alimentada pela da bondade, por meio de instrumentos econômicos, ideológicos, midiáticos e simbólicos, dentre outros. Além disso, a manutenção da má sociedade é condição sine qua non de sustentação de discursos e práticas da boa sociedade, muitas delas de viés autoritário e violento, para com os grupos ‘inimigos’. Ontem e hoje, diversos destes grupos são formados por jovens pobres das periferias das cidades, e em Teresina não é diferente.

Parte significativa das juventudes – e no sentido aqui tratado, a juventude pobre, seja de forma individual ou grupal, nas ditas ‘gangues’ – é constantemente colocada, no discurso produzido pela normalidade, como protagonista de ações pautadas na violência, como sujeitos causadores do medo e do terror aos moradores da cidade. Acerca da violência social e violência de Estado, que se abate sobre crianças e jovens do Brasil, os discursos da ordem têm pouco a dizer; optam pelo silêncio. Na contingência de tomar alguma medida, diante de eventuais esgarçamentos de pactos de convivência social, as elites agem no sentido da manutenção da lógica autoritária/de punição, como aponta Wacquant: “Já não podem garantir empregos nem assistência social, então o que garantem? Bem, para compensar a falta de legitimidade do Estado, os políticos têm oferecido mais polícia, justiça criminal e prisões.” (2005, p. 5); “o Estado se faz presente, reafirmando sua autoridade no campo penal para compensar a crescente impotência e ausência de poder do Estado em um campo social e econômico. (2005, p. 6).

Mas isso ainda não é tudo. Outra estratégia bastante comum das elites é a trivialização da tragédia social da juventude. Telles (1999) assinala que, em realidades transformadas em paisagens, a pobreza tem sido banalizada, tornada fato palatável com o qual se convive – com um certo desconforto, é verdade –, sem que as responsabilidades individuais e coletivas sejam interpeladas. A banalização da situação de miséria, que transforma os marginalizados em fenômeno natural, sendo explorados sob a marca do espetáculo pela mídia mundial, é, de fato, algo comum e recorrente no cotidiano das cidades. O Brasil se torna notícia, quando chacina seus meni¬nos de rua, quando incendeia pessoas dormindo nos bancos das praças, quando jovens matam jovens em conflitos do tráfico, nos morros brasileiros.

As favelas do Rio de Janeiro são passeio turístico obrigatório. Fazem parte de clips de Michael Jackson, porém, na opurtunidade, consubstanciam uma idéia de cenário e não de realidade crua, experienciada por seus moradores, com todas as feridas e dores individuais e coletivas, muitos deles jovens. Esta transfiguração em cenário irreal ou, se quisermos, hiperreal, esconde, atrás de si, situações e formas de existência subumanas, em contextos vivenciados, cotidianamente, por determinados grupos sociais, ensejando que a criminalidade surja como um elemento-chave, nos processos de sobrevivência física e, mais do que isto, de subjetivação e identificação.

Eis a matriz da chamada incivilidade, posto que, ante este cenário, a pobreza aparece como símbolo de “inferioridade”, de pequenez, de embrutecimento. Aqueles pertencentes a estes núcleos normalmente experimentam lugares muito aquém das regras de igualdade que a formalidade da lei e o exercício do direito deveriam concretizar. Podemos constatar tal afirmação ao analisarmos a violência policial que, na sua aplicação, deixa patente, de público, que nem todos são iguais, quando, dioturnamente, violam-se os mais elementares direitos civis, normalmente, das populações pobres. Ao discutir a grave situação da incivilidade, Santos (2006, p. 334) afirma que:
 
Trata-se da segregação social, através de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. (...) Nas zonas civilizadas o Estado age democraticamente, como Estado protetor, ainda que muitas vezes ineficaz ou não confiável. Nas zonas selvagens, o Estado age fascisticamente, como Estado predador, sem qualquer veleidade de observância, mesmo aparente do direito. O policial que ajuda o menino das zonas civilizadas a atravessar a rua, é o mesmo que persegue e eventualmente mata o menino nas zonas selvagens.
 
A realidade posta no estado do Piauí e na cidade de Teresina evidencia um quadro similar àquele que preocupa o autor. Da parte do Estado, configura-se a inexistência de políticas públicas de atendimento aos jovens em situação de grave vulnerabilidade – mais especificamente, aqueles que se encontram enredados no tráfico de drogas –, que leve em consideração mínima o seu entendimento de mundo e de vida, os percursos que não escolheram e os processos a que foram compungidos vivenciar. Restam-lhes as políticas de segurança pública, que se orientam pela lógica da panoptia, do triângulo asséptico que liga pobreza à violência e à criminalidade, levando os jovens a um ciclo vicioso de cadeias, penas e violência policial cotidiana. A história já pode demonstrar que esta conduta institucional não resolve o problema da segurança pública e tampouco aqueles de natureza social que vitimam os jovens, mas os expõem fortemente aos valores e regras e ao controle direto do tráfico. Este labirinto engendra realidades de violação variadas, vindas de diversas origens, sem rosto, voz ou nome aparentes, as quais deixam profundas marcas no acontecer das vidas juvenis. No fogo cruzado, os jovens passam a sobreviver como podem, inclusive praticando violências contra si e contra os demais.

É a juventude pobre brasileira e teresinense à deriva, vítima da violência estatal que, ao tempo em que ignora as demandas sociais mínimas postas pela situação de desproteção dos jovens, culpabiliza-os pelas condições de insegurança em que vivemos socialmente, colocando-os na linha de tiro de ações autoritárias e policialescas. Este assunto, no entanto, não dá audiência à mídia do espetáculo. Mudemos de pauta...

REFERÊNCIAS

COIMBRA, Cecília M.B.; NASCIMENTO, Maria Lívia. Jovens pobres: o mito da periculosidade. In. FRAGA, Paulo César Pontes, LULIANELLI, Jorge Atílio Silva (orgs). Jovens em tempo real. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

COIMBRA, Cecilia M.B.; BOCCO, Fernanda; NASCIMENTO, Maria Livia. A segurança criminal como espetáculo para ocultar a insegurança social: entrevista com Loïc Wacquant. Rio de Janeiro: 30 de setembro de 2005. mimeo.

COSTA, Marcondes Brito da. As Subjetividades do Jovem Infrator na passagem pela Liberdade Assistida. 2005. 66f. Monografia (Ciências Sociais).Universidade Federal do Piauí– UFPI, Teresina.

FOCAULT, Michael. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. 8ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.

PASSETTI, Edson. Violentados: Crianças, adolescentes e a justiça. 1ª ed. São Paulo: Editora Imaginário, 1999.

RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula/Amais, 1997.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cortez Editora, 2006.

SILVA, Valéria. Constituição identitária juvenil: o excesso como produto/resposta ao não-lugar, à efemeridade e à fluidez. Revista Política&Sociedade. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Vol. 5, n° 8. Florianópolis: Cidade Futura, 2006.

TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

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